
Nessa altura alguém escreveu um artigo a reclamar que o debate regressante à questão que lhe havia dado origem, ou seja, se sim ou não a Morte era uma ou várias, se era singular, Morte, ou plural, Mortes, e , aproveitando que estou com a mão na pluma, denunciar que a igreja, com essas suas suposições ambíguas, o que pretende é ganhar tempo sem se comprometer, por isso se pôs, como é seu costume, a encanar a perna à rã, a dar uma no cravo e outra na ferradura. A primeira dessas expressões populares causou perplexidade entre os jornalistas, que nunca a tinham ouvido ou lido em toda a sua vida. No entanto, perante o enigma, espevitados por um saudável afã de competição profissional, deitaram das estantes abaixo os dicionários, com que algumas vezes se ajudavam à hora do que estaria fazendo ali aquele batráquio. Nada encontraram, ou melhor, sim, encontraram a rã, a perna, encontraram o verbo encanar, mas o que não conseguiram foi tocar o sentido profundo que as três palavras juntas por força haveriam de ter. Até que alguém se lembrou de chamar um velho porteiro que viera da província há muitos anos e de quem todos riam porque, depois de tanto tempo a viver na cidade, ainda falava como se estivesse à lareira a contar histórias aos netos. Perguntaram-lhe se sabia o que significava e ele respondeu que sim senhor sabia. Então explique lá, disse o chefe da redação, Encanar, meus senhores, é por talas em ossos partidos, Até aí sabemos nós, o que queremos é que nos diga que tem isso a ver com a rã, Tem tudo, ninguém consegue por talas numa rã, Porquê, Porque ela nunca está quieta com a perna, E isso que quer dizer, Que é inútil tentar, ela não deixa, Mas não deve ser isso que deve estar escrito na frase do leitor, Também se usa quando levamos demasiado tempo a terminar um trabalho, e, se o fazemos de propósito, então estamos a empatar, a encanar a perna da rã, Sim senhor, Logo, o leitor que escreveu tem toda razão, Acho que sim, eu só estou a guardar a entrada da porta, Ajudou-nos muito, Não querem que lhes explique a outra frase, Qual, A do cravo e da ferradura, Não, essa conhecemo-la nós, praticamo-la todos os dias.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Um trecho do grande José Saramago, do qual sou fã, em que ele critica determinadas posturas da igreja (como sempre) e da imprensa ao mesmo tempo, e com uma irônica sutileza. Genial. Espero que apreciem.
2 comentários:
HAHA excelente. conheço pouco do saramago, mas gosto bastante.
Muito bacana Ed...
Tem um video no you tube do Saramago junto com... caraca... esqueci o nome do diretor brasileiro... no qual ele demonstra a emoção de ver em pelicula uma de suas obras... sensacional ... depois passo o link!
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