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A seriedade aqui chega a ser engraçada. Quando perguntaram ao Francis no hospital, na hora de fazer a ficha, qual era a religião dele, saiu pro deboche e disse: “Trotskista.” Aí a enfermeira pediu: “Poderia soletrar?”
New York, 29 de novembro de 1973
Paulo Francis ainda não me ligou, mas já tinha perdido o fogo há muito tempo. Ele disse que já previa que iam cortar tudo. Ia mandar sem a menor esperança. De fato ...
Agora, esta de cortar até anúncios já é requinte demais!
Liberaram minhas diquinhas? Devo ficar alegre ou triste?
Não entendi uma coisa: você disse que liberaram um fradim. Qual? Aquele que mandei para reapresentação e que tinha sido cortado pela censura do Rio? Se foi, eu vou mandar todo o pacote que tenho aqui de cartuns vetados, para testar a falta de unidade de critérios da censura. Amanhã seguirão todos! Será? Será?
New York, 6 de dezembro de 2973
Deixa eu dividir com você (a leitura de uma notícia, assim exercitando seu precário inglês): uma senhora de seus 65 anos recebia seguro social, vivia na maior economia. A tal pensão mal dava pra ela pagar o aluguel do seu quartinho, que deve ser num dos milhares de espigões daqui de New York. Sobravam 30 dólares por mês para comer! Ah! Deixa eu explicar mais. Em geral, os velhos aqui são abandonados pelas famílias em asilos, feito indigentes. São asilos muito pobres. Escandalosos para um país rico feitos os EUA. No Natal os filhos levam presentes e maças para seus pais asilados. Vi num filme, e era uma comédia, que mostrava tudo isso[...] E a tal velhinha fazia isso. Se equilibrava um mês inteiro com 30 dólares. Segundo testemunhos dos vizinhos do prédio, ela estava sempre alegrinha e saia cedinho para passear até de tarde, quando voltava. Nunca pedia nada. Uma solidão que dava na vista. Mas foi o testemunho de um vendedor de sorvetes desvendou tudo. A velhinha se abria um pouco com ele e sabia que ela, para que o dinheiro desse, começara a se alimentar de sorvete. Com o maior dos escrúpulos recusou a sugestão dele para que ela parasse de pagar aluguel. Nos últimos dias, conta ele, ela passou a tomar só um sorvete de manhã. E era tudo. E ontem, enquanto arrumava suas coisinhas antes de dormir, a velhinha caiu no chão e morreu. De fome.
É um modelo de sociedade igual a este que estamos construindo no Brasil pros nossos velhinhos, Zé. Nossos pais, Zé. Pra nós, Zé. Haja sorvete, Zé!
HENFIL, Diário de um Cucaracha, 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1983
Sabe do Henfil? Aquele da música da Elis Regina? Um dos maiores cartunistas brasileiros. Na minha não tão humilde opinião. Cartunista dos maiores jornais do período da Ditadura brasileira. Esse livro é uma reunião de cartas que Henfil envia dos Estados Unidos (onde foi fazer um tratamento para hemofílicos!) para seus amigos Tárik de Souza e José Eduardo Barbosa.
New York, 29 de novembro de 1973
Paulo Francis ainda não me ligou, mas já tinha perdido o fogo há muito tempo. Ele disse que já previa que iam cortar tudo. Ia mandar sem a menor esperança. De fato ...
Agora, esta de cortar até anúncios já é requinte demais!
Liberaram minhas diquinhas? Devo ficar alegre ou triste?
Não entendi uma coisa: você disse que liberaram um fradim. Qual? Aquele que mandei para reapresentação e que tinha sido cortado pela censura do Rio? Se foi, eu vou mandar todo o pacote que tenho aqui de cartuns vetados, para testar a falta de unidade de critérios da censura. Amanhã seguirão todos! Será? Será?
New York, 6 de dezembro de 2973
Deixa eu dividir com você (a leitura de uma notícia, assim exercitando seu precário inglês): uma senhora de seus 65 anos recebia seguro social, vivia na maior economia. A tal pensão mal dava pra ela pagar o aluguel do seu quartinho, que deve ser num dos milhares de espigões daqui de New York. Sobravam 30 dólares por mês para comer! Ah! Deixa eu explicar mais. Em geral, os velhos aqui são abandonados pelas famílias em asilos, feito indigentes. São asilos muito pobres. Escandalosos para um país rico feitos os EUA. No Natal os filhos levam presentes e maças para seus pais asilados. Vi num filme, e era uma comédia, que mostrava tudo isso[...] E a tal velhinha fazia isso. Se equilibrava um mês inteiro com 30 dólares. Segundo testemunhos dos vizinhos do prédio, ela estava sempre alegrinha e saia cedinho para passear até de tarde, quando voltava. Nunca pedia nada. Uma solidão que dava na vista. Mas foi o testemunho de um vendedor de sorvetes desvendou tudo. A velhinha se abria um pouco com ele e sabia que ela, para que o dinheiro desse, começara a se alimentar de sorvete. Com o maior dos escrúpulos recusou a sugestão dele para que ela parasse de pagar aluguel. Nos últimos dias, conta ele, ela passou a tomar só um sorvete de manhã. E era tudo. E ontem, enquanto arrumava suas coisinhas antes de dormir, a velhinha caiu no chão e morreu. De fome.
É um modelo de sociedade igual a este que estamos construindo no Brasil pros nossos velhinhos, Zé. Nossos pais, Zé. Pra nós, Zé. Haja sorvete, Zé!
HENFIL, Diário de um Cucaracha, 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1983
Sabe do Henfil? Aquele da música da Elis Regina? Um dos maiores cartunistas brasileiros. Na minha não tão humilde opinião. Cartunista dos maiores jornais do período da Ditadura brasileira. Esse livro é uma reunião de cartas que Henfil envia dos Estados Unidos (onde foi fazer um tratamento para hemofílicos!) para seus amigos Tárik de Souza e José Eduardo Barbosa.
As discussões são tão atuais e pertinentes, que parece que foi escrito ontem. Entre a fascinação e os fatos reais e cruéis, entre a eficácia e a indiferença humana de um mundo, segundo Henfil “a São paulo no ano 2000”, com muito humor, o autor envia notícias para “terrinha da censura”.
Em tempo: Cucaracha, pra quem não conhece, é como os estadunidenses se referem aos latinos-americanos e que quer dizer: baratas!
Em tempo 2: "A edição especial para mulheres" contem uma entrevista que Henfil deu para o Jaguar, o Ziraldo, o Sérgio cabral e o Millôr. Impagável e imperdível!
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