quarta-feira, 16 de abril de 2008

"Esse rei é um grande mágico" (Montesquieu)


Em todos os países, os reis eram então considerados personagens sagradas; pelo menos em certos países, eram tidos como taumaturgos. Durante muitos séculos, os reis da França e os reis da Inglaterra (para usar uma expressão já clássica) "tocaram as escrófulas": significando que eles pretendiam, somente com o contato de suas mãos, curar os doentes afetados por essa moléstia. Acreditava-se comumente em sua virtude medical. Durante um período apenas um pouco menos extenso, os reis da Inglaterra distribuíram a seus súditos, mesmo para além dos limites de seus Estados, anéis (os cramp-rings) que, por terem sido consagrados pelos monarcas, haviam supostamente recebido o poder de dar saúde aos epilépticos e de amainar as dores musculares. Esses fatos, ao menos em suas linhas gerais, são bem conhecidos pelos eruditos e pelos curiosos. Entretanto, devemos admitir que eles são singularmente repugnantes ao nosso espírito, visto que o mais das vezes não se fala sobre eles. Historiadores escreveram grossos livros sobre as idéias monárquicas, sem jamais mencioná-los. As páginas a seguir têm como principal objetivo preencher essa lacuna.

BLOCH, Marc (1886-1944). Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Ao ser lançado, em 1924, Os reis taumaturgos abriu perspectivas novas para a história, sendo uma das primeiras obras do que hoje se conhece como a Escola dos Annales, o movimento historiográfico mais bem-sucedido de nosso século. O autor, Marc Bloch, um jovem professor em Estrasburgo - e que dali a vinte anos seria fuzilado pelos nazistas -, dispunha-se, em suas palavras, a fazer história com matéria até então tida por mera anedota. O historiador deve valer-se de outras ciências humanas, como a psicologia, para sair do jogo entre os objetos tradicionalmente ditos sérios, as instituições e teorias, introduzindo como fator estratégico as crenças, que afinal de contas são o que responde pelo sucesso dos poderes e doutrinas no plano da recepção, isto é, em política, no plano da obediência. Com Os reis taumaturgos nasce, então, a história das mentalidades, mas também um novo modo de pensar a história política: se um poder não depende só das razões que dá para se justificar, mas igualmente das dimensões mais obscuras, quase míticas, em que adquire obediência e apoio, o exame das crenças passadas constitui uma via privilegiada para compreender a realeza, nos tempos em que ela freqüentava o sagrado.

Uma obra que vale muito a pena ser lida.

2 comentários:

Francesco disse...

Se roubei seu poste dobre o Gilberto Freyre você acabou de roubar o meu sobre o Marc Bloch! Sensacional Caroll... esse foi um dos livros que mais me marcou... hoje mesmo comentei com Adel na Biblioteca sobre a genialidade desse homem...

Valeu Caroll!!!

Vítor C. disse...

Há duas coisas nesse livro que espero nunca esquecer. A primeira, e mais pragmática, é que é possível escrever história com profundidade e com simplicidade - livro de história não tem que ser chato e de difícil acesso para ser bom.

A outra, mais teórica, é que a exploração da fé não pressupõe o ceticismo. Bloch divide entre as concepções romântica e voltairiana do poder: a primeira, como diria o Gilvan, "lança purpurina" sobre a história e só vê fé e boas intenções nos atores; a segunda em tudo vê enganação e exploração. Há, diria Bloch, um pouco de cada. O rei não duvida do milagre, de seu poder se realizá-lo, de que ao fazer milagres, faz um bem aos fiéis, mas isso não impede a manipulação política da fé.

Bloch trabalha magistralmente esses dois aspectos.