sexta-feira, 23 de maio de 2008

Um dia na vida de Ivan Deníssovitch

“Como habitualmente, às cinco da manhã ouviu-se o toque da alvorada, dado pelos golpes de um martelo sobre um pedaço de trilho suspenso junto da barraca de comando. Mal os sons intermitentes haviam penetrado através das vidraças das janelas, nas quais a geada se acumulava numa espessura de quase dois centímetros, e já o ruído cessava quase imediatamente. Fazia frio no campo e os guardas não sentiam vontade de continuar a dar o toque da alvorada por muito tempo (...).”

“(...) Chukhov levantava-se sempre logo que ouvia o toque da alvorada: Mas nesse dia não o fez. Sentira-se doente na noite anterior, num estado febril, com dores por todo o corpo. Durante toda a noite não conseguira aquecer-se e, mesmo no sono, sentira em dado momento que piorava bastante, enquanto logo a seguir sentia que melhorava. E ansiava para que a manhã não chegasse.

Mas, como habitualmente, a manhã chegou (...).”


“(...) Buinóvski voltara das latrinas sem falar com ninguém em especial, mas anunciando com uma espécie de maliciosa alegria:

- Bem, marinheiros, comecem a ranger os dentes. Está com certeza uma temperatura de trinta graus abaixo de zero.

Foi então que Chukhov decidiu dar parte de doente.

Naquele mesmo momento seu cobertor e sua jaqueta foram puxados sem cerimônia. Pôs de lado o capote que tinha sobre a cara e sentou-se na cama. Erguendo os olhos para ele, a cabeça ao nível do beliche, estava a figura delgada do ‘Tártaro’.

Sucedia que esse camarada estava de serviço fora da escala e aproximara-se sem ruído.

- C 854 – leu o Tártaro na tira de pano branco cosida nas costas da sua jaqueta. – Três dias de castigo, com trabalho.

No momento em que ouviram a sua voz abafada, alguns que ainda não tinham levantado em toda a barraca frouxamente iluminada, na qual duzentos homens dormiam em beliches infestados de percevejos, despertaram para a vida e começaram a vestir-se apressadamente.

- Por quê, cidadão chefe*? – perguntou Chukhov, mais mortificado do que sua voz deixava transparecer.

Com trabalho! Não era, ainda assim, muito mau. Davam comida quente e não havia tempo para começara pensar. Verdadeiro degredo era quando retiravam um prisioneiro do trabalho.

- Por não se levantar ao toque da alvorada. Siga-me até ao gabinete do comandante do campo – disse lentamente o Tártaro (...).”


“(...) Toda a turma 104 o viu sair, mais ninguém disse uma palavra. Que ganhariam com isso? Além disso, o que podiam dizer? (...) E Chukhov nada disse aos companheiros. Não queria irritar o Tártaro. De uma maneira ou de outra, podia confiar em que os camaradas lhe guardariam a refeição da manhã (...).”



* Aos prisioneiros não era permitido empregar a palavra "camarada".

OBS: O nome completo do personagem principal do livro é Ivan Deníssovitch Chukhov.

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